ANO C
2.º DOMINGO DA QUARESMA
Tema do 2.º Domingo da Quaresma
As leituras deste domingo têm como tema principal a fé. Em tempo de Quaresma somos convidados a revitalizar a nossa fé, a confiar de olhos fechados em Deus e nas suas propostas. Pode ser que, à luz da lógica humana, os caminhos que Deus nos aponta pareçam estranhos e ilógicos; mas eles conduzem, indubitavelmente, à vida verdadeira e eterna.
A primeira leitura apresenta-nos Abraão, o modelo do crente. Ele confiou plenamente em Deus, mesmo quando as promessas de Deus pareciam inverosímeis; e não saiu defraudado. Com Abraão, somos convidados a “acreditar”, isto é, a viver numa atitude de confiança total, de aceitação radical, de entrega plena aos desígnios desse Deus que não falha e é sempre fiel às suas promessas.
No Evangelho Jesus pede aos discípulos que confiem n’Ele e que ousem segui-l’O no caminho de Jerusalém. Esse caminho, embora passe pela cruz, conduz à ressurreição, à vida nova e eterna. Aos discípulos, relutantes e assustados, Deus confirma a verdade da proposta de Jesus: “Este é o meu Filho, o meu Eleito. Escutai-O”. É uma proposta que também nós somos convidados a abraçar.
Na segunda leitura Paulo de Tarso pede aos cristãos da cidade de Filipos que não se limitem a uma vivência religiosa feita de práticas externas e de gestos vazios. Os crentes verdadeiros são aqueles que vivem de olhos postos no Senhor Jesus, aquele que “transformará o nosso corpo miserável, para o tornar semelhante ao seu corpo glorioso”. Os filipenses e os cristãos de todas as épocas e lugares, devem caminhar para Ele sem hesitação, firmes na fé e guiados pela Boa Nova da salvação.
LEITURA I – Génesis 15,5-12.17-18
Naqueles dias,
Deus levou Abrão para fora de casa e disse-lhe:
«Olha para o céu e conta as estrelas, se as puderes contar».
E acrescentou:
«Assim será a tua descendência».
Abrão acreditou no Senhor,
o que lhe foi atribuído em conta de justiça.
Disse-lhe Deus:
«Eu sou o Senhor
que te mandou sair de Ur dos caldeus,
para te dar a posse desta terra».
Abrão perguntou:
«Senhor, meu Deus,
como saberei que a vou possuir?»
O Senhor respondeu-lhe:
«Toma uma vitela de três anos,
uma cabra de três anos e um carneiro de três anos,
uma rola e um pombinho».
Abrão foi buscar todos esses animais,
cortou-os ao meio
e pôs cada metade em frente da outra metade;
mas não cortou as aves.
Os abutres desceram sobre os cadáveres,
mas Abrão pô-los em fuga.
Ao pôr do sol,
apoderou-se de Abrão um sono profundo,
enquanto o assaltava um grande e escuro terror.
Quando o sol desapareceu e caíram as trevas,
um brasido fumegante e um archote de fogo
passaram entre os animais cortados.
Nesse dia, o Senhor estabeleceu com Abrão uma aliança,
dizendo:
«Aos teus descendentes darei esta terra,
desde o rio do Egipto até ao grande rio Eufrates».
CONTEXTO
A primeira leitura de hoje faz parte de um bloco de textos a que se dá o nome genérico de “tradições patriarcais” (cf. Gn 12-36). Trata-se de um conjunto de relatos singulares, originalmente independentes uns dos outros, sem grande unidade e sem carácter de documento histórico. Nesses capítulos aparecem, de forma indiferenciada, “mitos de origem” (descreviam a “tomada de posse” de um lugar pelo patriarca do clã), “lendas cultuais” (narravam como um deus tinha aparecido nesse lugar ao patriarca do clã), histórias sobre as vicissitudes diárias dos clãs nómadas que circularam pela Palestina durante o segundo milénio, e ainda reflexões teológicas posteriores destinadas a apresentar aos crentes israelitas modelos de vida e de fé.
Os clãs referenciados nas “tradições patriarcais” – nomeadamente os de Abraão, de Isaac e de Jacob, grupos vagamente aparentados que mais tarde, numa fase posterior da história, aparecem ligados por laços “familiares” – viajavam de lugar em lugar à procura de pastos para os seus rebanhos. Levavam consigo diversos sonhos e expetativas. Sonhavam encontrar uma terra fértil e com água abundante, onde pudessem instalar-se e descansar, fugindo aos perigos e às incertezas da vida nómada. Sonhavam também possuir uma família forte e numerosa que perpetuasse a “memória” da tribo e se impusesse aos inimigos. O deus ancestral que protegia a tribo e a conduzia ao longo das suas deambulações era o potencial concretizador desse ideal.
A primeira leitura do segundo domingo da quaresma coloca-nos precisamente neste cenário. Abraão, um dos patriarcas desses clãs nómadas, conversando com Deus, refere a sua deceção porque a sua vida está a chegar ao fim e ainda não tem um filho que lhe perpetue o nome. A herança que vai deixar, tudo aquilo que construiu, irá ficar para um servo, um tal Eliézer, de Damasco (cf. Gn 15,2-3). Conhecemos contratos do séc. XV a. C. que parecem iluminar esta realidade: estipulam que, em caso de falta de filhos, o senhor possa adotar um escravo; e este, por sua vez, compromete-se a dar ao seu senhor uma sepultura conveniente. Talvez seja a esse costume que o texto alude.
Que terá Deus a dizer ao seu servo Abraão?
MENSAGEM
Deus reitera a Abraão a promessa que lhe tinha feito quando o convidou a deixar a sua terra e a sua família (cf. Gn 12,2: “farei de ti um grande povo”): ele terá um filho, um descendente que continuará a sua linhagem (cf. Gn 15,4). Convidando depois Abraão a sair da tenda (ou, talvez, do santuário onde aconteceu a visão descrita), Deus acrescenta: “olha para o céu e conta as estrelas, se as puderes contar. Assim será a tua descendência” (Gn 15,5).
Depois da garantia de Deus, o narrador deixa Abraão a contemplar em silêncio o céu estrelado e volta-se para o leitor, comunicando-lhe os seus próprios juízos teológicos (cf. Gn 15,6): Abraão “acreditou no Senhor, o que lhe foi atribuído em conta de justiça” (Gn 15,6). Abraão, apesar da demora na concretização da promessa de Deus, não retirou a sua fé, a sua plena confiança em Deus. A fé (a palavra usada no texto hebraico é o verbo “aman”, que significa “estar firme”, “ser leal”, “acreditar plenamente”) de que aqui se fala traduz uma atitude de confiança total, de aceitação radical, de entrega plena aos desígnios de Deus; a “justiça” é um conceito relacional, que exprime um comportamento correto no que diz respeito a uma relação comunitária existente: aqui, significa o reconhecimento de que Abraão teve um comportamento correto na sua relação com Javé, ao confiar totalmente em Deus e ao aceitar os seus planos sem qualquer dúvida ou discussão.
Definida a “qualidade” da “fé” de Abraão, Deus acrescenta um elemento que, no contexto das histórias patriarcais, normalmente aparece incluído na “promessa”: a garantia de uma terra (cf. Gn 15,7). Deus – esse Deus que mandou Abraão sair de Ur dos caldeus, e o conduziu para a terra de Canaan – irá concretizar oportunamente todos os sonhos do seu servo Abraão. Deus é fiel, não dececiona quem nele confia. A confiança que Abraão depositou em Deus não será defraudada.
Na segunda parte do relato apresentado pelos catequistas de Israel (e que a liturgia deste dia não reporta na sua totalidade), refere-se um misterioso cerimonial, frequentemente associado a compromissos entre duas pessoas ou entidades: a celebração de um rito de “aliança” (cf. Gn 15,9-17). O referido ritual, conhecido sob esta ou outra forma semelhante em numerosos povos antigos, selava o compromisso entre os parceiros ligados pela “aliança”. Sacrificavam-se animais (neste caso, “uma novilha de três anos, uma cabra de três anos, um carneiro de três anos, uma rola e um pombo ainda novo” – Gn 15,9), cortavam-se os animais ao meio e colocavam-se as duas metades frente a frente; quem subscrevia a aliança passava entre as duas metades dos animais imolados e pronunciava contra si próprio uma espécie de maldição, para o caso de ser responsável pela quebra do pacto. Apresentando a “aliança” entre Deus e Abraão segundo o modelo que, nos compromissos humanos, garantia a máxima firmeza contratual, o catequista bíblico acentua a ideia de um compromisso solene e irrevogável que Deus assume com Abraão. A promessa de Deus fica assim totalmente garantida.
Repare-se, ainda, num pormenor final: Deus não exigiu nada a Abraão, em troca, nem Abraão teve que passar no meio dos animais mortos (só Deus passou, no “fogo ardente”). A promessa de Deus a Abraão é, pois, totalmente gratuita e incondicional. A fidelidade de Deus é uma realidade irrevogável, seja qual for a atitude do homem.
INTERPELAÇÕES
- Abraão é apresentado, não apenas neste relato, mas em diversos outros passos das tradições patriarcais, como o homem que confia plenamente em Deus. O seu tempo de vida vai-se escoando, a sua mulher Sara é estéril e já não tem idade para ser mãe, o nascimento de um filho que lhe assegure a descendência parece cada dia mais improvável; mas Abraão, contra toda a lógica humana, confia em Deus e nas suas promessas. Entrega toda a sua vida e toda a sua esperança nas mãos de Deus, convencido de que Deus nunca o desapontará. Abraão é o crente ideal, o modelo para os crentes de todas as épocas. Desde Abraão até aos nossos dias passaram quase quatro mil anos. Desde então fizemos um longo caminho, sempre acompanhados pelo olhar paterno e materno de Deus. Mais: frequentamos a escola de Jesus; e Jesus ensinou-nos a confiar em Deus como uma criança pequenina confia no seu “papá”. Depois de tudo isso, a que nível está a nossa confiança em Deus? Estamos sempre dispostos – mesmo em situações que não compreendemos ou que contradizem as nossas lógicas e as nossas ideias feitas – a entregar-nos nas mãos de Deus, a confiar nos seus desígnios, a aderir às suas propostas?
- O Deus que se revela a Abraão é um Deus que se compromete com o homem e cujas promessas são garantidas, gratuitas e incondicionais. Ele não cumpre as suas promessas apenas se nós cumprirmos as nossas: Deus mantém as suas promessas mesmo que nós escolhamos percorrer caminhos de egoísmo e de autossuficiência, ignorando as indicações que Ele nos dá. Com paciência e amor de pai, Deus insiste em vir ter connosco e em apontar-nos os caminhos que conduzem à vida e à salvação. Que efeitos tem, no desenrolar da nossa vida, essa fidelidade de Deus? É algo em que não pensamos, ao qual ficamos indiferentes, ou é algo que nos ajuda a construir a nossa existência com serenidade e confiança? Vemos a fidelidade de Deus como um “cheque em branco”, que podemos utilizar para fazer o que nos apetecer, ou como algo que nos compromete e nos convida a caminhar com Deus?
- A catequese de Israel apresenta sempre Abraão como um homem em permanente diálogo com Deus. Abraão partilha com Deus os seus sonhos e esperanças, as suas dificuldades na luta diária da existência; mas também escuta Deus, acolhe as suas indicações, vive ao ritmo das propostas de Deus. Talvez esta descrição que os catequistas de Israel fazem do seu patriarca seja um tanto idealizada; mas mostra aos crentes israelitas – e a nós também – que a vida deve ser vivida em permanente diálogo com Deus. Em tempo de quaresma – de conversão, de regresso a Deus – talvez seja uma sugestão que podemos considerar. Estamos dispostos, neste tempo de quaresma, a dar mais espaço ao diálogo com Deus, à escuta de Deus?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 26 (27)
Refrão: O Senhor é a minha luz e a minha salvação.
O Senhor é minha luz e salvação:
a quem hei de temer?
O Senhor é protetor da minha vida:
de quem hei de ter medo?
Ouvi, Senhor, a voz da minha súplica,
tende compaixão de mim e atendei-me.
Diz-me o coração: «Procurai a sua face».
A vossa face, Senhor, eu procuro.
Não escondais de mim o vosso rosto,
nem afasteis com ira o vosso servo.
Não me rejeiteis nem abandoneis,
meu Deus e meu Salvador.
Espero vir a contemplar a bondade do Senhor
na terra dos vivos.
Confia no Senhor, sê forte.
Tem coragem e confia no Senhor.
LEITURA II – Filipenses 3,17-4,1
Irmãos:
Sede meus imitadores
e ponde os olhos naqueles
que procedem segundo o modelo que tendes em nós.
Porque há muitos,
de quem tenho falado várias vezes
e agora falo a chorar,
que procedem como inimigos da cruz de Cristo.
O fim deles é a perdição:
têm por deus o ventre,
orgulham-se da sua vergonha
e só apreciam as coisas terrenas.
Mas a nossa pátria está nos Céus,
donde esperamos, como Salvador, o Senhor Jesus Cristo,
que transformará o nosso corpo miserável,
para o tornar semelhante ao seu corpo glorioso,
pelo poder que Ele tem
de sujeitar a Si todo o universo.
Portanto, meus amados e queridos irmãos,
minha alegria e minha coroa,
permanecei firmes no Senhor.
CONTEXTO
A cidade de Filipos, situada na Macedónia oriental, era uma cidade próspera, com uma população constituída maioritariamente por veteranos romanos do exército. Organizada à maneira de Roma, estava fora da jurisdição dos governantes das províncias locais e dependia diretamente do imperador. Gozava dos mesmos privilégios das cidades de Itália e os seus habitantes tinham cidadania romana. Paulo chegou a Filipos pelo ano 49 ou 50, no decurso da sua segunda viagem missionária, acompanhado de Silvano, Timóteo e Lucas (cf. At 16,1-40). Da sua pregação nasceu a primeira comunidade cristã em solo europeu.
A comunidade cristã de Filipos era uma comunidade entusiasta, generosa, comprometida, sempre atenta às necessidades de Paulo e do resto da Igreja (como no caso da coleta em favor da Igreja de Jerusalém – cf. 2 Cor 8,1-5). Paulo nutria pelos cristãos de Filipos um afeto especial; e os filipenses, por seu turno, tinham Paulo em grande apreço. Apesar de tudo, a comunidade cristã de Filipos não era perfeita: os altivos patrícios romanos de Filipos tinham alguma dificuldade em assumir certos valores como o desprendimento, a humildade e a simplicidade.
Paulo escreve aos Filipenses numa altura em que estava na prisão (não sabemos se em Cesareia, em Roma, ou em Éfeso). Os filipenses tinham-lhe enviado, por um membro da comunidade chamado Epafrodito, uma certa quantia em dinheiro, a fim de que Paulo pudesse prover às suas necessidades. Na carta, Paulo agradece a preocupação dos filipenses com a sua pessoa (cf. Fl 4,10-20); exorta-os a manterem-se fiéis a Cristo e a incarnarem os valores que marcaram a vida de Cristo.
O texto que nos é proposto como segunda leitura faz parte de um longo desenvolvimento (cf. Flp 3,1-4,1), no qual Paulo alerta os Filipenses para que tenham cuidado com “os cães”, os “maus obreiros”, os “falsos circuncidados” (cf. Flp 3,2). Quem são estes, a quem Paulo se refere de uma forma tão pouco delicada? Muito provavelmente são cristãos de origem judaica (“judaizantes”) que, apegados às suas tradições religiosas, exigiam aos cristãos o cumprimento integral da Lei de Moisés. No tempo de Paulo, esses judeocristãos, com as suas exigências e intolerância, criavam alarme e perplexidade nas comunidades cristãs do mundo helénico. Confundiam os cristãos, criavam conflitos e punham em causa o essencial da fé. As duras palavras de Paulo resultam da sua revolta ao ver a ação dessa gente. Paulo estava convicto de que a vida cristã não é o cumprimento de ritos externos, como são os ritos da Lei; mas é a adesão à proposta gratuita de salvação que Deus nos faz em Jesus.
MENSAGEM
Paulo, passando pela cidade de Filipos, anunciou o Evangelho de Jesus aos filipenses. Foi para eles como que um “treinador”, que os preparou para o desafio da vida cristã. Da sua parte, Paulo tem consciência de que ainda não alcançou o seu objetivo; sabe que a sua corrida continua, em direção à meta que é o encontro com o Senhor Jesus (cf. Flp 3,12-14). E os filipenses? Paulo convida-os a terem os mesmos sentimentos que ele próprio tem e a continuarem a correr em direção a Cristo (cf. Flp 3,15-16).
Paulo pede aos filipenses que, na sua “corrida”, continuem a seguir as indicações que Paulo lhes deixou (“sede meus imitadores e ponde os olhos naqueles que procedem segundo o modelo que tendes em nós” – Flp 3,17). Há outros “treinadores” que apareceram recentemente em Filipos e que pretendem dirigir a “corrida” dos filipenses: são esses “judaizantes” que procuram impor aos cristãos as práticas da Lei de Moisés. Apresentam-se com arrogância e garantem ter um conhecimento total de Cristo e da sua proposta de salvação. Mas desprezam Paulo e acusam-no de ter anunciado um Evangelho truncado, incompleto, falso. Paulo considera-os “inimigos da cruz de Cristo” (Flp 3,18) e tem medo que eles tragam bastante mal àqueles que acolherem as suas exigências (“o seu fim é a perdição” – Flp 3,19).
Esses “judaizantes”, apesar de se apresentarem como donos da verdade, são gente equivocada, que vive de olhos postos na terra. Paulo usa a ironia para os caraterizar: “têm por deus o ventre, orgulham-se da sua vergonha e só apreciam as coisas terrenas” (Flp 3,19). Na verdade, passam o tempo a discutir quais são os alimentos puros e impuros, segundo um complicado código legal que herdaram de Moisés (“têm por deus o ventre”) e fazem da circuncisão uma questão fundamental para a fé (“orgulham-se da sua vergonha”: aqui a palavra “vergonha” é um termo para designar os órgãos sexuais). Vivem, portanto, de forma absolutamente “rasteira”, de olhos postos nas realidades deste mundo. Paulo, em contrapartida, quer que os seus queridos filhos de Filipos vivam de olhos postos no céu, na “cidade” para onde todos são chamados a caminhar a fim de se encontrarem com o Senhor Jesus (Flp 3,20). É para essa realidade que Paulo, o “treinador” dos filipenses, aponta.
Depois deste alerta de Paulo, as coisas estão claras. Os filipenses e os cristãos de todas as épocas e lugares sabem que devem permanecer “firmes no Senhor” (Flp 4,1), correndo, ao ritmo do Evangelho, ao encontro da meta final, do seu destino definitivo.
INTERPELAÇÕES
- Os “judaizantes” que Paulo denuncia na Carta aos Filipenses reduziam a fé à observância de determinadas práticas externas e ritualistas, que provinham das tradições e da cultura de um povo, mas pouco ou nada contribuíam para aproximar os crentes de Deus. Enquanto faziam finca-pé em coisas sem importância, acabavam por colocar em plano secundário aquilo que era essencial. Trata-se de uma “tentação” que se apresenta a cada passo no caminho dos crentes: reduzir a vivência da fé a um conjunto de coisas “palpáveis”, que se executam mecanicamente, que se “despacham” num instante e que não implicam grandes “investimentos”. Cumpridos os gestos que a lei estipula, o crente sente-se em regra com Deus e com a sua própria consciência e evita aquilo que é realmente exigente: a mudança do coração, o compromisso com Jesus e com o Evangelho, o acolhimento dos desafios sempre novos de Deus. Como vivemos a nossa fé? Limitamo-nos a cumprir determinadas práticas religiosas tradicionais, ou procuramos ir ao fundo das coisas e encontrar o caminho para nos aproximarmos realmente de Deus? Neste tempo quaresmal, por exemplo, a que é que damos mais importância: aos “jejuns” e “abstinências” estipulados pela tradição da Igreja, ou à conversão, à mudança de vida, à escuta mais atenta de Deus, ao seguimento de Jesus?
- A expressão usada por Paulo para falar dos “judaizantes” – “têm por deus o ventre, orgulham-se da sua vergonha e só apreciam as coisas terrenas” – faz-nos pensar nas pessoas, religiosas ou não, que vivem de olhos postos nas realidades rasteiras e banais e descuram as realidades imperecíveis: são as pessoas que se limitam a “aproveitar o instante”, sem qualquer horizonte de eternidade; são as pessoas que se preocupam apenas com o seu bem estar e vivem indiferentes à sorte dos outros homens e mulheres; são as pessoas que procuram dar uma boa imagem de si próprias, mesmo que essa imagem não corresponda àquilo que são; são as pessoas que se limitam a cumprir o que está estipulado por uma lei qualquer (como aqueles “judaizantes” que os filipenses conheciam), mas deixam passar o que é essencial, aquilo que as faz mais livres e que poderia dar um sentido mais pleno às suas vidas… Como nos situamos em relação a isto? Vivemos “a prazo”, com horizontes limitados, ou estamos empenhados em construir uma vida voltada para as coisas verdadeiras e eternas?
- Paulo considera a vida uma corrida de fundo em direção a uma meta que é o encontro com Cristo Jesus. Ele está consciente de que, enquanto caminhar na terra, a corrida não estará terminada: tem de continuar a esforçar-se para atingir a meta final. Paulo tem razão: não podemos, a dado momento, determo-nos a gozar as nossas conquistas, convencidos de que já está tudo feito e consolidado. Em cada passo da nossa vida temos de renovar a nossa opção por Deus e continuar os nossos esforços em direção à vida nova e eterna. Somos gente acomodada, convencida de que já “correu” o suficiente e que agora pode viver de rendimentos, ou somos gente que dia a dia, passo a passo, procura acolher os desafios sempre novos de Deus e corresponder àquilo que Deus espera de nós?
ACLAMAÇÃO ANTES DO EVANGELHO
Refrão 1: Louvor e glória a Vós, Jesus Cristo Senhor.
Refrão 2: Glória a Vós, Jesus Cristo, Sabedoria do Pai.
Refrão 3: Glória a Vós, Jesus Cristo, Palavra do Pai.
Refrão 4: Glória a Vós, Senhor, Filho do Deus vivo.
Refrão 4: Louvor a Vós, Jesus Cristo, rei da eterna glória.
Refrão 6: Grandes e admiráveis são as vossas obras, Senhor.
Refrão 7: A salvação, a glória e o poder a Jesus Cristo, Nosso Senhor.
No meio da nuvem luminosa, ouviu-se a voz do Pai:
«Este é o meu Filho muito amado: escutai-O».
EVANGELHO – Lucas 9,28b-36
Naquele tempo,
Jesus tomou consigo Pedro, João e Tiago
e subiu ao monte, para orar.
Enquanto orava,
alterou-se o aspeto do seu rosto
e as suas vestes ficaram de uma brancura refulgente.
Dois homens falavam com Ele:
eram Moisés e Elias,
que, tendo aparecido em glória,
falavam da morte de Jesus,
que ia consumar-se em Jerusalém.
Pedro e os companheiros estavam a cair de sono;
mas, despertando, viram a glória de Jesus
e os dois homens que estavam com Ele.
Quando estes se iam afastando,
Pedro disse a Jesus:
«Mestre, como é bom estarmos aqui!
Façamos três tendas:
uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias».
Não sabia o que estava a dizer.
Enquanto assim falava,
veio uma nuvem que os cobriu com a sua sombra;
e eles ficaram cheios de medo, ao entrarem na nuvem.
Da nuvem saiu uma voz, que dizia:
«Este é o meu Filho, o meu Eleito: escutai-O».
Quando a voz se fez ouvir, Jesus ficou sozinho.
Os discípulos guardaram silêncio
e, naqueles dias, a ninguém contaram nada do que tinham visto.
CONTEXTO
Estamos no final da “etapa da Galileia”; durante essa etapa, Jesus anunciou a salvação aos pobres, proclamou a libertação aos cativos, fez os cegos recobrar a vista, mandou em liberdade os oprimidos, proclamou o tempo da graça do Senhor (cf. Lc 4,16-30). À volta de Jesus já se formou esse grupo dos que acolheram a oferta da salvação (os discípulos). Testemunhas das palavras e dos gestos libertadores de Jesus, eles descobriram que Jesus é o Messias de Deus (cf. Lc 9,18-20).
No entanto, “uns oito dias antes” da cena da transfiguração, os discípulos tinham ficado perplexos quando Jesus lhes falou do futuro próximo: “o Filho do Homem tem de sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos doutores da Lei, tem de ser morto e, ao terceiro dia, ressuscitar” (Lc 9,21-22). Os discípulos ficaram estupefactos: o caminho que Jesus se propunha seguir passava pelo sofrimento e pela morte (Ele tinha também falado em ressurreição; mas, essa referência deve ter-lhes passado despercebida pois, por essa altura, eles não sabiam bem o que isso queria dizer)? Era esse o horizonte de Jesus? Não era com isso que contavam quando se dispuseram a andar com Ele. Para piorar as coisas, Jesus tinha-lhes pedido, na sequência, que se negassem a si mesmos, tomassem a cruz e o seguissem no caminho do dom da vida até à morte (cf. Lc 9,23-26).
É natural que tudo isto deixasse os discípulos inquietos e indecisos. Jesus achou, face a este estado de coisas, que tinha chegado a hora de lhes desvelar o sentido do caminho que se propunha seguir. Chamou, então, Pedro, Tiago e João – o “núcleo duro” daquele grupo – e convidou-os a subir com Ele a um monte. Nesse dia e nesse monte eles iriam achar algumas respostas para as perguntas que os inquietavam.
O texto não identifica o “monte” para onde Jesus, Pedro, Tiago e João se dirigiram. Contudo, a tradição fala do Monte Tabor, uma montanha com 588 metros de altura, situada no meio da planície de Jezreel, coberta de carvalhos, pinheiros, ciprestes, aroeiras e plantas silvestres. O Tabor tinha sido, nos tempos antigos, um lugar sagrado para os povos cananeus.
Literariamente, a narração da transfiguração é uma teofania – quer dizer, uma manifestação de Deus. Portanto, o autor do relato vai colocar no quadro todos os ingredientes que, no imaginário judaico, acompanham as manifestações de Deus (e que encontramos quase sempre presentes nos relatos teofânicos do Antigo Testamento): o monte, as aparições, as vestes “de uma brancura refulgente”, a nuvem, a voz que vem do céu e mesmo o medo daqueles que presenciam o encontro com o divino. Isto quer dizer o seguinte: não estamos diante de um relato exato de acontecimentos, mas de uma catequese (construída de acordo com o imaginário judaico) destinada a confirmar a verdade da proposta de Jesus.
MENSAGEM
Jesus, acompanhado por Pedro, Tiago e João, subiu ao “monte”. Lucas é o único dos evangelistas a introduzir, no relato da subida “ao monte”, o tema da oração (vers. 28): Jesus “subiu ao monte, para orar” (Lc 9,28). É um traço típico do Evangelho segundo Lucas: Jesus, ao longo de toda a sua vida, mas sobretudo nos momentos mais decisivos, sente necessidade de falar com o Pai. Era a partir desse diálogo que Ele percebia mais claramente a vontade do Pai e que encontrava a força para cumprir a missão que o Pai lhe confiava.
A narração do que aconteceu nesse dia naquele monte vai ser construída a partir de elementos simbólicos tirados do Antigo Testamento. Que elementos são esses?
O monte situa-nos num contexto de revelação: é sempre num monte que Deus Se revela; e, em especial, é num monte (o Sinai) que Ele faz uma aliança com o seu Povo e dá a Moisés as tábuas da Lei.
A mudança do aspeto do rosto e as vestes “de uma brancura refulgente”, recordam o resplendor de Moisés, ao descer do Sinai (cf. Ex 34,29), depois de se encontrar com Deus e de receber as tábuas da Lei. Além disso, o branco é a cor de Deus: indica que estamos no âmbito do divino.
Moisés e Elias, as duas figuras do Antigo Testamento que também aparecem no cenário da transfiguração de Jesus, representam a Lei e os Profetas (que anunciam Jesus e que permitem entender Jesus); além disso, são personagens que, de acordo com a catequese judaica, deviam aparecer no “dia do Senhor”, quando se manifestasse a salvação definitiva (cf. Dt 18,15-18; Mal 3,22-23). Lucas é o único dos evangelistas a dizer-nos que Moisés e Elias “falavam da morte (“êxodo”) de Jesus, que ia consumar-se em Jerusalém” (vers. 31). A palavra “êxodo”, aqui utilizada por Lucas, cumpre duas funções: alude à “saída” dos hebreus do Egito, rumo à liberdade e à vida nova, por um lado; e, por outro, é um eufemismo frequentemente usado para falar da morte. O que naquele dia se passou naquele monte é para ajudar os discípulos a entender que a morte próxima de Jesus, a sua passagem para o Pai, irá completar o antigo êxodo e proporcionar a libertação definitiva do Povo de Deus.
Outros elementos compõem o cenário da catequese sobre a transfiguração… O “sono” dos discípulos (vers. 32) é simbólico: eles “dormem” porque não querem entender que a “glória” do Messias tenha de passar pela experiência da cruz e da entrega da vida. As “tendas” (vers. 33) que Pedro se propõe construir (alusão à “festa das tendas”, em que se celebrava o tempo do êxodo, quando o Povo de Deus habitou em “tendas, no deserto?) significam que os discípulos queriam deter-se nesse momento de revelação gloriosa, de festa, ignorando o destino de sofrimento de Jesus. O “medo” que toma conta dos discípulos é a reação habitual do homem diante da manifestação da grandeza, da omnipotência e da majestade de Deus (cf. Ex 19,16; 20,18-21). A nuvem (vers. 34), por sua vez, indica a presença de Deus: era na nuvem que Deus se ocultava e era a partir da nuvem que Deus conduzia o seu Povo ao longo da caminhada pelo deserto, em direção à Terra Prometida (cf. Ex 40,34-35; Nm 9,18.22; 10,34).
Mas o elemento mais significativo é, sem dúvida, “a voz” que vem da “nuvem” (o espaço onde Deus se oculta). Essa “voz” dirige-se aos discípulos e declara solenemente: “Este é o meu Filho, o meu Eleito: escutai-O”. O próprio Deus “apresenta” Jesus e garante que Ele é “o Filho” que veio ao encontro dos homens com um mandato do Pai. E o testemunho de Deus sobre Jesus completa-se com um imperativo: “escutai-o”. Os discípulos ficam assim prevenidos de que devem escutar e acolher as indicações de Jesus, sem mais hesitações e medos, em cada passo do caminho.
Por cima de todo o cenário, iluminando-o, paira a luz gloriosa da ressurreição. A glória de Deus que se manifesta em Jesus, as “vestes de uma brancura refulgente” (lembram as vestes resplandecentes dos dois homens que, na manhã de Páscoa, apareceram às mulheres que tinham ido procurar Jesus ao túmulo – cf. Lc 24,4) apontam nesse sentido. Os discípulos são, assim, convidados a olhar para lá da cruz e a descobrir que, no final do caminho de Jesus, não está o fracasso, mas está a ressurreição, a vida plena, a vitória sobre a morte.
Lucas, na linha do que Marcos já tinha feito (cf. Mc 9,2-10), pegou em todos estes elementos e com eles construiu a sua catequese. Nela, Jesus é apresentado, antes de mais, como o Filho, o Eleito, em quem se manifesta a glória do Pai. Ele não é um visionário que vive iludido e que não tem os pés assentes na terra; nem é um revolucionário com sede de protagonismo que se aproveita, em benefício do seu projeto político, de um grupo de discípulos ingénuos… Jesus é o Filho de Deus, enviado aos homens para lhes propor a salvação e a Vida verdadeira. Tudo o que Ele diz e propõe está de acordo com o projeto salvador de Deus. Os discípulos devem escutá-lo, levar a sério as suas indicações, mesmo quando Ele propõe um caminho de morte, de dom da vida até às últimas consequências (cf. Lc 9,23-25).
Jesus é, também, de acordo com esta catequese, o Messias libertador e salvador esperado por Israel, anunciado pela Lei (Moisés) e pelos Profetas (Elias). Ele veio concretizar as promessas que, ao longo da história da salvação, Deus fez ao seu Povo.
Finalmente, Jesus é o novo Moisés, Aquele através de quem Deus dá ao seu Povo a nova lei e através de quem propõe aos homens uma nova Aliança. Da ação libertadora de Jesus, o novo Moisés, irá nascer um novo Povo de Deus. Guiado por Jesus, esse Povo caminhará pelo deserto da cruz e da morte até chegar à Terra Prometida, onde encontrará Vida em abundância.
Lucas termina o seu relato dizendo que os discípulos “guardaram silêncio” e que naqueles dias, não contaram a ninguém o que tinham visto naquele monte (vers. 36). É provável que só mais tarde, após a ressurreição de Jesus, tenha resultado claro para os discípulos o que tinham experimentado no monte da transfiguração. Mas, desde já, aquele “momento” com Jesus constituiu para os discípulos uma injeção de esperança. Deu-lhes o ânimo de que necessitavam para seguirem atrás de Jesus no caminho para Jerusalém.
INTERPELAÇÕES
- Neste segundo domingo da Quaresma façamos, também nós, a experiência de subir com Jesus ao monte… Enquanto subimos, podemos conversar com Ele e, com toda a sinceridade, dizer-Lhe as nossas dúvidas e inquietações. Podemos dizer-Lhe que, por vezes, nos sentimos perdidos e desanimados diante da forma como o nosso mundo se constrói; podemos dizer-lhe que o caminho que Ele aponta é duro e exigente e que não sabemos se teremos a coragem de o percorrer até ao fim; podemos até dizer-lhe, talvez com alguma vergonha, que às vezes duvidamos dele e corremos atrás de outras apostas, mais cómodas, mais atraentes e menos arriscadas… E, depois de lhe dizermos isso tudo, deixemos que Jesus nos fale, nos explique o seu projeto, nos renove o seu desafio… E vamos, também, prestar atenção à voz de Deus que nos garante: “olhem que esse Jesus que Eu enviei ao vosso encontro é o meu Filho, o meu eleito, aquele a quem Eu entreguei o projeto de um mundo mais humano e mais fraterno… Confirmo a verdade do caminho que Ele vos propõe. Escutai-O, ide com Ele, acolhei as suas propostas e indicações, mesmo que tenhais de remar contra a maré. O caminho que Ele vos aponta pode passar pela cruz, mas conduz à Vida verdadeira, à ressurreição”. É com estas atitudes que somos seguidores de Jesus Cristo?
- Este é o meu Filho, o meu Eleito: escutai-o”. É verdade: precisamos de escutar Jesus mais e melhor. Quando o “escutamos” – quer dizer, quando ouvimos o que Ele nos diz, quando acolhemos no coração as suas indicações e quando procuramos concretizá-las na vida – começamos a ver tudo com uma luz mais clara. Começamos a perceber qual é a maneira mais humana de enfrentar os problemas da vida e os males do nosso mundo; damos conta dos grandes erros que os seres humanos podem cometer e descobrimos as soluções que Deus nos aponta… Escutar Jesus pode curar-nos das nossas cegueiras seculares, dos preconceitos que nos impedem de acolher a novidade de Deus, dos medos que nos paralisam; escutar Jesus pode libertar-nos de desalentos e cobardias, e abrir o nosso coração à esperança. A escuta de Jesus está no centro da nossa experiência de fé? Nas nossas comunidades cristãs damos espaço suficiente à escuta de Jesus?
- O tempo de Quaresma é um tempo favorável de conversão, de transformação, de renovação. Traz-nos um convite a questionarmos a nossa forma de encarar a vida, os valores que priorizamos, as opções que vamos fazendo, as nossas certezas e apostas, os nossos interesses e projetos… O que é que eu, pessoalmente, necessito de mudar, na minha forma de pensar e de agir, a fim de me tornar um discípulo coerente e comprometido, que segue Jesus no caminho do amor levado até às últimas consequências, até ao dom total de si próprio?
- É verdade que, para muitos dos nossos contemporâneos, o caminho proposto por Jesus não parece muito entusiasmante… Não assegura bem-estar, nem bens materiais, nem triunfos, nem reconhecimento, nem fama, nem poder, nem tranquilidade, nem qualquer outro valor que muitos dos homens e mulheres do nosso tempo consideram fundamentais para que as suas vidas tenham algum sentido. Contudo, nós, discípulos de Jesus, acreditamos que só o amor – o amor vivido como serviço, como dom de si próprio, ao estilo de Jesus – dá sentido à vida; acreditamos que a construção de um mundo novo – mais humano, mais são, mais verdadeiro – depende de acolhermos e vivermos as propostas de Jesus. O que poderemos fazer para contagiar os nossos irmãos e irmãs com o nosso entusiasmo por Jesus e pelo seu projeto de um mundo novo?
- Pedro, Tiago e João, testemunhas da transfiguração de Jesus, parecem não ter muita vontade de “descer à terra” e de enfrentar o mundo e os problemas dos homens. Propõem fazer três tendas e ficar no cimo daquele monte, onde tudo parece tão fácil e tão indolor. Representam aqueles que vivem de olhos postos no céu, alheados da realidade concreta do mundo, sem vontade de intervir para o renovar e transformar. No entanto, ser seguidor de Jesus obriga-nos a “regressar ao mundo” para testemunhar aos homens, mesmo contra a corrente, que a realização autêntica está no dom da vida; obriga a atolarmo-nos no mundo, nos seus problemas e dramas, a fim de dar o nosso contributo para o aparecimento de um mundo mais justo e mais feliz. Assumimos a nossa ligação a Deus, não como uma droga que nos adormece, mas como compromisso com Deus que se concretiza no esforço de construirmos um mundo mais justo, mais humano, mais cheio de amor?
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 2.º DOMINGO DA QUARESMA
(adaptadas, em parte, de “Signes d’aujourd’hui”)
1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 2.º Domingo da Quaresma, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.
2. ARRANJAR UM TEMPO DE CONTEMPLAÇÃO.
Ao longo da celebração, arranjar um verdadeiro tempo de contemplação silenciosa (seja depois da homilia, seja depois da comunhão), um tempo que será introduzido de maneira a ser um “coração a coração” com Cristo transfigurado, “que transformará o nosso corpo miserável, para o tornar semelhante ao seu corpo glorioso” (segunda leitura).
3. ORAÇÃO NA LECTIO DIVINA.
Na meditação da Palavra de Deus (lectio divina), pode-se prolongar o acolhimento das leituras com a oração.
No final da primeira leitura:
“Deus de Abraão, Deus de nossos pais na fé, nós Te reconhecemos como o Pai do Povo inumerável dos crentes, que Tu multiplicaste como as estrelas do céu e a areia do deserto. Nós Te bendizemos.
Nós Te pedimos por todos os crentes que se reconhecem filhos de Abraão em diferentes confissões. Que o teu Espírito nos guie para a unidade”.
No final da segunda leitura:
“Pai, nós Te damos graças, porque nos nomeaste cidadãos dos céus e nos deste os modelos de Jesus e dos Apóstolos para nos guiar.
Que o teu Espírito, pelo seu poder, transforme os nossos pobres corpos à imagem do corpo glorioso de teu Filho, que esperamos como Salvador. Confirma a nossa esperança”.
No final do Evangelho:
“Deus de luz, bendito sejas por estes momentos de oração em cada domingo. Tu nos transportas sobre a montanha, com Jesus e os discípulos. É bom estarmos aqui, na tua presença.
Nós Te pedimos: abre o coração e o espírito de todos os fiéis cristãos à Palavra viva do teu Filho bem-amado, para que o escutemos”.
4. BILHETE DE EVANGELHO.
Quando Jesus está em oração, não está só, Deus seu Pai está com Ele. O monte é o lugar da revelação de Deus e a nuvem é símbolo da sua presença. É, pois, no momento em que Jesus rezava que Deus Se manifesta, não somente a seu Filho, mas também aos seus discípulos, e a presença de Moisés e de Elias recorda a antiga aliança àqueles que vão beneficiar da nova aliança. Ao mesmo tempo que, no monte Sinai, Deus tinha revelado o seu Nome a Moisés para fazer sair do Egipto o seu povo escolhido, também na montanha da Transfiguração Deus dá a identidade de Jesus: “Este é o meu Filho, o meu Eleito”. E aos três apóstolos, embaixadores de todos aqueles que reconhecerão em Jesus o Filho bem-amado, Deus pede para O escutar. É antes de ver a nuvem e de ouvir a voz do Pai que Pedro propõe para erguer três tendas para Jesus, Moisés e Elias, porque pensa que são apenas três. Será necessário que Deus Se manifeste para que Pedro, um pouco como Jacob, diga talvez: “Deus estava no monte e eu não sabia!” Será preciso chegar à manhã de Páscoa, e o dom do Espírito no Pentecostes, para que ele proclame a sua fé n’Aquele que Deus fez “Senhor e Messias, este Jesus que crucificaram”.
5. À ESCUTA DA PALAVRA.
“Este é o meu Filho, o meu Eleito: escutai-O”. A voz vinda da nuvem pede-nos para escutar Jesus. Prestar atenção ao que o outro diz… Isso nem sempre é fácil, é necessário estar interiormente disponível ao outro, fazer um tempo de paragem interior, um tempo de silêncio para poder dar ao outro espaço para que se possa exprimir. É preciso acolher o que o outro quer dizer-nos, sem quaisquer preconceitos ou filtros… Todo o diálogo verdadeiro implica tal escuta, exige uma lenta e paciente aprendizagem do silêncio exterior, mas sobretudo, o que é ainda mais difícil, do silêncio interior. Hoje, trata-se se escutar o Filho que Deus escolheu. Ora, Jesus nada diz aos três discípulos. Entretém-se com Moisés e Elias, que simbolizam a Lei e os Profetas, isto é, toda a Escritura, toda a Palavra que Deus dirigiu ao seu Povo. A sua única presença torna-se, de facto, uma palavra em acto. Eles manifestam que toda a Revelação tem o seu cumprimento em Jesus. É preciso, pois, “escutar o Filho” porque n’Ele encontramos tudo o que Jesus quer dizer-nos, hoje. Não precisamos de procurar novas luzes noutros lugares, nas visões ou revelações de várias espécies… Tudo nos é dado em Jesus. Eis porque colocarmo-nos na escuta da Palavra que é Jesus é de uma importância capital, se queremos ser verdadeiramente discípulos de Cristo. É uma das grandes graças do Concílio Vaticano II haver dado todo o seu lugar à Palavra de Deus, na liturgia e na vida dos cristãos, uma Palavra a receber pessoalmente e a escutar em Igreja. O tempo da Quaresma é-nos oferecido, precisamente, como uma ocasião para nos colocarmos mais na escuta da Palavra de Deus que Se fez carne. Oxalá possamos aproveitar para aprofundar o nosso silêncio interior, tornando-nos mais atentos ao que Jesus nos quer dizer, a cada um e a cada uma de entre nós e à nossa comunidade.
6. ORAÇÃO EUCARÍSTICA.
A Oração Eucarística III adapta-se bem à liturgia deste domingo.
7. PALAVRA PARA O CAMINHO…
«Este é o meu Filho, o meu Eleito: escutai-O»… O catecismo de muitos de entre nós está bem distante, a nossa bagagem religiosa talvez esteja leve: eis a Quaresma, a ocasião para recuperar energias. Como? Trata-se de ir às fontes, às raízes, aos fundamentos! Esta fonte é Jesus Cristo. “Escutai-O”, diz a voz que se faz ouvir das nuvens: vinde beber a sua Palavra! Abrimos o Livro onde corre esta fonte de água viva? Será que ao lermos os Evangelhos – este ano o Evangelho de Lucas – abrimos os ouvidos e deixamo-nos pôr em questão pelo Mestre?
UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
PROPOSTA PARA ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA
Grupo Dinamizador:
José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
www.dehonianos.org